segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Equacionando a saudade


Newton era grande amigo meu e sempre que possível nós nos encontrávamos em uma confeitaria no centro do Rio no final da tarde para tecermos longas conversas, desde assuntos à toa como cortes de cabelo, a assuntos mais densos como as leis universais. As maçãs não estavam no cardápio, em geral pedíamos chá com biscoitos amanteigados de Petrópolis.

Em um desses encontros, disse-me com muita convicção que chegara à conclusão que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas ficou desapontado com minha contestação. Refutei essa ideia de cara!

Iniciei a defesa da minha antítese falando-lhe de paixões avassaladoras que, nestes casos, pode acontecer dos amantes ocuparem o mesmo espaço, isso quase aconteceu comigo. Contei-lhe então sobre Gateau, um francês delicioso que me deixou saudades. Só de pensar na distância em que nos encontrávamos naquele momento era de rodar a cabeça e sentir frio no estômago. Conheci Gateau em uma viagem, por incrível que possa parecer, a Ouro Preto (Minas Gerais), ocasião em que fomos apresentados por uma amiga comum em um restaurante ao som de violinos. Devorei-o com os olhos do tipo amor à primeira vista enquanto ele se derretia por mim! Seria possível tão irresistível atração entre dois corpos? Pode ser, mas deixaria que Newton me explicasse sobre o poder da atração em outro momento.

Irresistível paixão e tamanha saudade, eu poderia jurar que o desejo de ocuparmos o mesmo espaço era quase incontrolável. Perguntei a Newton se era possível calcular a saudade que aumentava na razão direta do tempo e espaço que nos separava. Tínhamos, portanto, uma equação: quanto mais o tempo passa, maior é a saudade, medida em quilômetros por dias. Nessa hora lembrei-me do tempo em que Einstein participava conosco desses encontros, talvez fosse do seu gosto opinar em minha razão.

Muito indignado, Newton negaceava sacudindo a longa cabeleira. Dizia que isso tudo era bobagem minha e que saudade não se mede! Disse-me então em tom de provocação: “A essa distância? Duvido muito que ainda esteja a sua espera, já se derreteu por outra!”.  

Pensei em Gateau com carinho e considerei a distância que nos separava. Foi só então que me ocorreu a ideia de chamar o garçom: “servem Petit Gateau aqui?”. Em minutos, eu já estava servida, e em poucas e rápidas colheradas já havia devorado a iguaria, pondo fim a tanta saudade, enquanto Newton me olhava espantado. Dois corpos se fundiram em um: eu e Gateau éramos agora um único corpo.

Concluí então que Newton tinha razão: saudade não se mede, se mata! 


domingo, 18 de outubro de 2015


Amor à primeira batida


Nem sempre aquilo que nos parece um desastre é de fato ruim, como um amor à primeira batida, por exemplo.

Mariana e Mauro se conheceram em uma dessas situações no mínimo conflituosa, pra não dizer belicosa, mas hoje (eu juro que sim) vivem entre “os meus, os seus e os nossos” e, apesar do cotidiano, em imensa felicidade.

Mariana é conhecida por sua impulsividade quase teatral, beirando a insanidade, mas uma delícia de pessoa, amável e educada, desde que não seja provocada. Separou-se do marido depois de descobrir que o infeliz tinha uma amante. A princípio tentou reconquistá-lo, depois prometeu fazer de sua vida um inferno.

Mauro é um homem tranquilo e gentil, inteligente, sabe cozinhar e gosta de cuidar das crianças, um homem que toda mulher queria ter, com exceção da sua ex: pediu o divórcio alegando que perdera a paciência com sua quase perfeição, “enjoado demais” dizia ela.

Foi num estacionamento do shopping que se conheceram. Mariana seguia secretamente a atual de seu ex-marido, precisou fazer manobra radical e acertou a traseira do carro de Mauro que esperava parado para entrar de ré na vaga deixada por Mariana. Ela saltou do carro para ver o estrago. Mauro esboçou um pequeno sermão que culminaria na cobrança do prejuízo causado quando Mariana perguntou, cinicamente, o que fazia com o carro parado a sua frente: o argumento de Mariana era tão absurdo que deixou Mauro sem palavras.

Mariana gritou, xingou aquele que julgava ser seu algoz, afinal perdera a sirigaita de vista. Depois, percebendo a expressão estupefata do sujeito, aproveitou-se e simulou um ataque de nervos. Por fim, ela tirou os sapatos, Mauro protegeu a cabeça com os braços, julgando que seria atacado a sapatadas, “estaria enlouquecida?”. Ela sentou-se no meio fio e chorava como criança, agora completamente entregue e sincera... o homem compadecido pela mocinha descomposta ofereceu-lhe o ombro, perdoou-lhe a dívida, ofereceu-lhe uma carona e por fim o seu coração, só pediu-lhe em troca que o aceitasse em casamento.


Além dos filhos que já tinham, tiveram mais dois. Uniram suas escovas de dente debaixo do mesmo teto, o do banheiro nesse caso. Porém, assim como a escova de dente, o carro cada um tem o seu: não se empresta e não se fala mais nisso!

sábado, 10 de outubro de 2015


Gavetas


Com as marcas do tempo em minha pele e por todo o meu corpo, porém com a intensidade adolescente, acreditei que seria possível refazer caminhos. Tomada de coragem e determinação, revirei as gavetas da alma, procurei os versos escritos em cadernetas amareladas e me calcei de humildade e desprendimento para caminhar por lugares já esquecidos, permitindo-me chorar todas as lágrimas até secar e empalidecer, para depois sorrir e gargalhar, apaixonar-me loucamente, entregando-me ao vento sem nem saber para onde ele me levaria.

Não me levou a lugar algum esse tal de vento.  Aqui estou eu, dei voltas em círculos sem sair do lugar. Tornar-me alguém desinteressante e sem decência, com o coração indolente não estava em meus planos, não era esse o caminho que eu desejava tomar. Entre o que fui e as incertezas de quem serei, sou pedaço, sou retalho, mas sou potência.

Ainda sou noite escura, mas quando o dia amanhecer, eu não vou querer acordar. Vou sonhar o dia inteiro, abrirei os olhos, levantarei da cama, mas minha mente não despertará, está decidido! Quando se sonha, tudo é possível, não há fronteiras, não há barreiras, não há distância: respirar embaixo d’água e voar como pássaro, encontrar pessoas queridas, amores perdidos e tesouros escondidos.


Já tenho cede, cede de viver uma nova história, leve e madura. Com zelo e paciência, arrumo as gavetas, seco as lágrimas, refaço as malas, reinvento os caminhos, reescrevo meu destino... desta vez não mais ao sabor do vento, mas ao labor das pernas na direção escolhida. Não há certezas, há coragem apenas. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015


Frutas

Eu fazia uma salada de frutas e comecei a pensar em prosopopeia. Fazemos associações às vezes coerentes, outras vezes nem tanto.

O abacaxi, por exemplo, poderia ser associado a alguém de suma importância, afinal de contas ele tem uma coroa, mas se disserem que o fulano é um abacaxi, todo mundo vai pensar “lá vem problema”, pior que o pepino, porque ninguém vai querer descascar.

Ser considerado um banana também não é algo que se possa interpretar como elogio, eu particularmente gosto da ideia “do banana” ter um enorme coração. Ser uma uva é relativo, vai depender se é com ou sem caroço, mas se for uva passa, aí não é nada bom! Embora o figo seja citado até nas escrituras sagradas eu nunca ouvi ninguém dizer “aquele cara é mesmo um figo”. Linda mesmo é a melancia, não conheço combinação de cores mais perfeita, mas experimente só elogiar uma mulher dizendo-lhe que parece uma melancia! 

Já a maçã é a eleita, a querida de todos: todo professor tem um aluno ou aluna “maçã”. Ela é clássica e elegante como nenhuma outra. A pera até tentou tomar-lhe o posto, mas que nada, dizem que é dura ou aguada.

Se eu pudesse escolher, certamente seria uma pitanga: pequena e gorducha, às vezes doce e outras azeda, dependendo da época. Não gosto de ouvir dizer que “choraram todas as pitangas”, carambolas: que chorem as goiabas! O mais interessante dessa fruta é que a semente é bem maior que a fruta em si: a pitanga é uma potência, carrega dentro de si a vontade de ser árvore, ou seja, ela é uma fruta esforçada e bem intencionada diante da vida. A pitanga se faz perceber, mesmo por aqueles que não a saboreiam, por sua intensidade de cor e sabor excêntrico. Ela é delicada e notável. Ela é leve e atrevida.

Concluída a minha salada de frutas e toda a reflexão figurativa, passei a olhar para as pessoas de forma diferente e tentar descobrir com que fruta esse ou aquele se parecia. Ah, essa minha cabeça de melão, está lotada de sementes de ideia à toa!

domingo, 27 de setembro de 2015

Carolina e Voucher


Carolina é grande amiga e temos muitas afinidades tais como um gosto musical eclético, gostar de viajar e de andar pelo centro do Rio, além da solidão é claro! Carolina ainda acredita que encontrará o grande amor de sua vida quando tropeçar e cair nos braços do ser encantado. Bem, foi mais ou menos assim que encontrei o amor da minha vida, mas isso aconteceu por volta dos meus 18 anos, já não os tenho mais há muito tempo, nem os meus 18 anos nem o amor da minha vida, que o perdi não sei onde nem quando, mas faço votos e torço de verdade para que ela encontre o seu do jeitinho que imaginou!

Combinamos, como é de costume, o que iriamos fazer no final de semana. Dessa vez o programa teria que ser planejado com certa antecedência, pois iriamos ao show de uma banda famosa, na Lapa, era certo esgotar os ingressos. Ficou decidido então que Carolina compraria os ingressos antecipadamente pela internet.

Dois dias depois me deixou um recado no whatsApp dizendo que o ingresso estava comprado, eu deveria levar um quilo de alimento não perecível, o tal do ingresso solidário, e eu sinceramente achei bem legal que ela me considera uma pessoa solidária. Disse-me também que eu não me preocupasse, pois nos encontraríamos no local de sempre e ela levaria o Voucher.

Para tudo!

Como assim: Carolina tropeçou e caiu nos braços do ser encantado e não me contou nada? O Voucher também vai? Quem seria esse cara? Afinal, Carolina já falava nele com um tom de intimidade e até o convido para ir ao show! Fiquei tentando digerir essa história e pensando em quais seriam as suas reais intenções para com a minha amiga. Voucher, de certo seria negro, com a cabeça raspada, desses que usa shampoo mesmo sem precisar. Não muito baixo, pois os meninos pequenos não fazem o tipo da minha amiga, nem muito magro, nem muito forte; normal, assim no seu número. Juro: gastei algumas horas montando seu arquétipo, e mais outras tantas construindo seu perfil psicológico, e outras ainda conversando mentalmente com o cara aquelas coisas que a mãe diz quando conhece o namorado da filha.

Para uma grande amiga desejamos sempre grandes encontros, ela é linda por dentro e por fora e merece a pessoa mais fofa do planeta, pelo menos é o que eu acho! Mas não queria antecipar demais as coisas, afinal seria apenas o início do relacionamento entre Carolina e Voucher!

Nos encontramos no local marcado e vi Carolina caminhando em minha direção, sozinha: uai sô! (pensei). Minha ansiedade não me permitiu fazer muitos rodeios e fui logo perguntando:
_ E aí!
_ Tudo bem?
_ Ahm, cadê ele? Tá atrasado, não vem, vai nos encontrar no show?
Carolina sorriu um sorriso estranho:
_ Ele quem?
_ Seu amigo?
_ Amigo?
_ É... o Voucher?
_ Ahhh, o Voucher, tá aqui na bolsa! Lembrou-se de trazer o alimento?
_ Como assim tá na bolsa?

No dicionário: Voucher é um termo de origem inglesa que significa recibo ou documento que comprova o pagamento e o direito a um serviço ou produto. Em inglês, o verbo vouch significa "atestar", "confirmar".

Retirou o papel impresso da bolsa, que nos daria o direito de trocar pelos ingressos na bilheteria. Depois de lhe revelar a confusão provocada pela minha ignorância, do verbo ignorar no sentido de desconhecer, sugeri que colocasse esse lindo nome em seu primeiro filho. Assistimos ao show... e eu com a sensação de ter assassinado o namorado da minha amiga, já estava até gostando dele!  Mas foi ela quem me consolou:


_ Fica assim não amiga, isso vai passar. Ele nem era tão bonito assim!

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Gabriel, o filósofo 


No início foi difícil, escondido, mas afinal eu não estava cometendo nenhum pecado:
_ Não vou falar, não vou falar, vou falar: fiz um perfil em um site de relacionamentos. Pronto falei!

É como estar em uma festa com muitas pessoas falando com você ao mesmo tempo, no entanto tem sempre alguém que chama a sua atenção, se destaca dos demais. E foi num site de relacionamentos que conheci Gabriel46, acho que não foram os pais que colocaram esse nome na criatura, mas é assim a alcunha da grande maioria das pessoas nesses sites, tem códigos do tipo “ano em que nasceu” ou, como eu, denunciando a idade que é pra não haver equívocos: que fique muito claro que já estou na “melhor idade”.

Não me lembro quem piscou primeiro o olho virtual, mas Gabriel46 me fez uma pergunta que me fez vê-lo de uma forma diferente: “você prefere o dia ou a noite?” Li e reli seu perfil antes de responder pra me certificar de que havia “compatibilidade”. Sua foto de óculos redondos iguais ao de John Lennon, jaqueta de couro, numa pose sedutora do tipo “tô aqui pro que der e vier, se vier comigo”. Respondi: “prefiro a noite para ver as estrelas”. Imediatamente chegou nova mensagem: “você gosta de sorvete?” Pensei então: que tipo de homem seria Gabriel46, de uma inteligência rebuscada, perguntas tão simples e profundas que me davam a possibilidade de tantas respostas?  Respondi então: “gosto de sorvete, de chocolate, de café e de andar pelo centro do Rio sábados à tarde, e você?” E outra pergunta: “Qual sua cor predileta?” “Gosto do vermelho, do laranja, pois que sou decidida e criativa, mas também gosto do azul e do verde que me acalmam e equilibram...” E as respostas eram cada vez mais longas e densas.

A essa altura pensava em Gabriel, seja qual for seu número, código ou idade, como um grande filósofo contemporâneo, a pessoa que eu procurava para passar o resto dos meus dias, beleza rara de se ver. Mas depois de responder cerca de quinze perguntas pude perceber que ele nunca respondia às minhas e começou a repeti-las: “você já me perguntou isso Gabriel”; “isso eu já lhe respondi”, “mas você ainda não respondeu à pergunta que lhe fiz!”


Foi só então que percebi que Gabriel46 não era assinante e que aquelas eram perguntas prontas do site. Ai, ai, ai... o romance acabou e Gabriel46 foi minha primeira desilusão virtual! 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Nas nuvens com Pedrinho

Meu carro tem nome, minha máquina de lavar e minha máquina fotográfica. Meu celular também tem nome: chama-se Pedrinho, ele é contemporâneo assim como minhas novas relações sociais. “Isso fala?” Responderia a Pedro II, grande amor da minha vida, que isto fala, envia mensagem de texto e imagem, filma, fotografa, calcula, agenda: o que diria Pedro sobre isso?

Desespero-me quando a amiga Lourdes cria mais um grupo no WhatsApp. Dia desses avisei aos amigos do grupo que eu realmente os amo, mas preciso abandoná-los, pois a bateria do meu celular deve durar até que eu pague a última prestação do aparelho.

A relação com meu celular tornou-se tão intensa que entrei em pânico o dia em que o perdi no trabalho. Fiquei gelada só de pensar na possibilidade de viver sem Pedrinho: TRAVEI. Uma amiga, vendo o meu desespero perguntou se eu já havia enviado as informações armazenadas para a “nuvem”, não enviei nada porque ainda não havia aprendido chegar às nuvens, devo ter pulado algum capítulo na modernidade.

Imagine só: meu namorado virtual me chamaria no WhatsApp e eu não receberia as suas mensagens até que providenciasse um novo aparelho e outro chip, isso poderia demorar dias. Meu bem era muito reservado, morava dentro do meu celular e jamais saiu lá de dentro, nem pra me encontrar. Seria o fim de algo que nem mesmo começou. Nosso frágil relacionamento não suportaria dias sem uma mensagem ou um sinal de fumaça. A essa altura já pensava em apelar para o bom e velho e-mail.

Enfim encontrei Pedrinho na estante da minha sala de trabalho (ufa!), mas o meu namorado virtual nunca mais me enviou nenhuma mensagem, foi embora sem dizer adeus: dust in the wind. Quanto ao namorado virtual eu jamais saberei, mas Pedrinho me ama, com certeza!